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  • quarta-feira, 12 de setembro de 2018

    A Psicologia dos X-Men | Parte 4 - Aprendendo a amar: o próximo nunca estará tão distante

    JUÍZO MORAL: O ROUBO NA INFÂNCIA


    Escreveu Piaget que toda moralidade consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurado no respeito que o indivíduo adquire por essas regras, sendo juízo moral uma faculdade da alma que permite diferenciar entre o bem e o mal, moral relacionada com costumes, valores, crenças.

    Piaget optou por seguir sua pesquisa com a questão do dever. O ingresso da criança no universo moral certamente se dá pela aprendizagem diversos deveres impostos pelos pais e adultos em geral: não mentir, não pegar as coisas dos outros, não falar palavrão, etc. Isso é identificado no diálogo de Charles Xavier e Raven no início do filme em que ele diz que ela nunca mais vai precisar roubar a comida, mas que ali ela pode pegar comida à vontade.

    Piaget afirma que as noções de dever e do bem tem origens e gêneros diferentes. A gênese do sentimento de obrigatoriedade, portanto do dever, encontra-se nas relações de coação; o bem, por sua vez é um produto da cooperação. Na coação trata-se de fazer como os outros, seguindo-se o critério da semelhança. Na cooperação, no entanto, o critério é outro: é o da reciprocidade, o que não significa “fazer igual ao outro”, mas, sim, coordenar o ponto de vista próprio com o ponto de vista do outro. Charles Xavier no decorrer de todo o filme age como um cooperador para com uma criança que entrou em sua casa para roubar comida, mas que ele adotou como uma irmã.

    O PROFESSOR XAVIER E A ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL


    Segundo Lev Vygotsky, há dois níveis de desenvolvimento: o real - onde o aluno está mediante o que ele já sabe - e o potencial - onde ele pode chegar e o que ele ainda pode aprender mediante a ajuda de outras pessoas -. À distância entre o que o aluno é capaz de fazer de modo autônomo (o nível de desenvolvimento real) e o que ele aprenderá em colaboração com outros (o nível de desenvolvimento potencial), Vygostky denominou de zona de desenvolvimento proximal onde estão as funções que ainda não amadureceram, o que as torna semelhantes a diamantes em estado bruto que precisam ser lapidadas.

    Para tanto, o professor precisa conhecer a dinâmica e o processo intrínseco a cada um de seus alunos de modo que eles não sejam pareados, mas cada um desenvolva suas habilidades, mostre suas dificuldades e troque experiências com o outro - integração de alunos em diferentes níveis de desenvolvimento - em uma via de mão dupla. Em suma, a ideia principal é de que o professor tire vantagem das ricas diferenças em sala de aula e estimule o potencial de cada aluno, afinal cada um avança em seu próprio ritmo.

    Confio totalmente em você.

    Considerando esses dois níveis de desenvolvimento identificados por Vygotsky (mais uma vez, salientados: um referindo-se aos processos de conhecimento já adquiridos e o outro se tratando de capacidades em vias de construção, identificados como nível de desenvolvimento real ou efetivo e nível de desenvolvimento potencial, respectivamente) e tomando esta teoria como pano de fundo, ao observar o personagem Professor Xavier no filme X-Men: Primeira Classe, percebe-se claramente a aplicação da teoria do psicólogo russo na prática desempenhada pelo personagem a seus alunos.

    O filme mostra um personagem já familiarizado com a prática docente - Charles Xavier -, ministrando suas aulas em uma universidade tradicional, o que, ao conhecer outras pessoas que assim como ele possuíam dons especiais, facilitou a adoção de uma metodologia que os auxiliassem a compreender o poder de alcance destas capacidades específicas através da autorreflexão e a prática de exercícios cada vez mais direcionados a explorar seus potenciais.

    Esses jovens com dons especiais, os mutantes, detêm habilidades sobre-humanas, mas não sabem como lidar com elas. Há trechos no filme em que o Professor Xavier ensina três mutantes a desenvolverem os poderes que eles já têm, mas como supracitado, não sabem controlá-los ou utilizá-los para um propósito devido. A tempo, o Professor ainda detém conceitos trazidos por Henri Wallon como afetividade no ensino e o desenvolvimento da motricidade através de exercícios práticos e controle de movimentos corporais, além da confiança que ele tem em seus alunos, algo visto na prática fenomenológica-humanista.

    O PROFESSOR QUE ACEITA INCONDICIONALMENTE OS INACEITÁVEIS


    No decorrer da construção da autoidentidade do ser humano, percorremos vários caminhos. Para se lançar na imensa e profunda problematização filosófica e espiritual do "ser" presente no humano, é preciso não apenas considerar uma gama quase que imensurável de questões e conceituações já preexistentes e que circunscrevem em limitância o quase que ilimitado arcabouço experienciado e, por que não, experienciável contido no "ser". Não seria fidedigno também, tal adentramento no universo enigmático e transcendental da existência, se desconsiderado fosse a necessidade da fragmentação daquilo que já se entende como verdade, como cláusulas pétreas presente no campo imagético, ético e moral das pessoas. Não que seja necessária a desvalorização ou o abandono permanente da própria experiência vívida que compõe a singularidade pessoal e particular de quem se lança em tal odisseia, mas aquilo que chamamos na filosofia de epokhé (suspenção de juízo) é peça intrinsicamente ligada e atada à mais próxima percepção e apreensão da realidade alheia, criteriosamente inviolável para a compreensão do universo do outro.

    Sabe-se que não é de hoje, que a busca do homem pela compreensão das questões que o cerca, que o invadem, que dinamicamente interagem com sua existência e que influenciam sua relação e sua compreensão das coisas que o circunscrevem, o levou aos pensamentos mais profundos e complexos que fundamentam a filosofia, e como exemplo de tal feito, lancemos mão do mito da caverna, descrito por Platão no século V A.C.

    Segundo Platão, a realidade a priori está resumida a uma caverna, onde, nossa consciência seria como indivíduos presos em seu interior, sem podermos nos livrar das correntes que nos aprisionam e nos limitam os movimentos e posição, de modo que nem poderíamos nos libertar nem mesmo nos virar, estando condenados a olhar eternamente para o fundo da caverna e condicionados à interpretação de que a realidade está contida naquilo que sempre vimos e sempre iremos ver, sombras da realidade projetadas no fundo da caverna, embora não saibamos que tais coisas sejam apenas uma projeção "sombria" - na conotação literal da palavra - da realidade.

    Ainda segundo Platão, é preciso sair da caverna para então, compreender a realidade como é em si, e não suas cópias do mundo real atrás de nós, projeções "silhuetadas" no fundo da caverna escura e limítrofe que seria nossa consciência quando voltada apenas para o que achamos ou consideramos, sem profundidade nem vastidão de conhecimento e, apesar de tal processo de saída da caverna para enfim se enxergar a realidade completa traga uma dor e cegueira temporária aos olhos de quem nunca antes viu a luz nem se deparou com toda a complexidade do real, é passado tal processo de dor que alcança-se a libertação que possibilitar-se-á ajudar na libertação de outros.

    Fazendo enfim paralelo com o filme X-Men: Primeira Classe, notamos no enredo que narra o início do grupo dos heróis, uma riqueza fenomenológica presente nas relações dos personagens. É possível perceber ao longo de todo o filme, a ênfase no que chama-se na fenomenologia de "atitude fenomenológica", que ao contrário da "atitude natural", compõe-se da prática da epokhé, da "redução fenomenológica", onde, através da suspensão dos próprios valores e princípios, da comum ética e moral, usa-se da empatia, entender o outro pela ótica do outro, e apesar de não ser preciso concordar, compreender o outro segundo sua experiência, nos conduz à mais próxima interpretação que pode-se ter do outro. Também é possível notar, conceitos bem próximos à teoria centrada na pessoa de Carl Rogers.

    Ambas os conceitos são predominantemente vistos na figura de Charles Xavier, sempre muito empático e compreensivo, em uma das primeiras cenas do filme, ainda criança, Charles surpreende no meio da noite uma menina que furtava a sua residência e que, assim como ele, também é mutante; nesta cena, podemos notar a empatia e o que podemos chamar da prática da epokhé, a redução fenomenológica, e Charles, suspendendo o valor "étnico-moral", acolhe a menina em sua casa, consolando-a e a diz que não mais ela precisará roubar.

    É notório que o modus operandi de Charles contagia os outros mutantes que ele visa recrutar e o carisma e a prática fenomenológica presente no comportamento dele é indispensável para sua aceitação como amigo e líder, pois faz com que as pessoas, em especial os demais mutantes se sintam acolhidos e compreendidos, aceitos, apesar da rejeição e do medo que enfrentam mediante à rejeição das demais pessoas, a saber, não mutantes.

    Por outro lado, percebemos a resistência por parte de Erik Lensherr, o Magneto. Tal resistência é parcialmente, porém não pouco importante, explicada no decorrer do filme. É justamente tal resistência que leva Charles a um interesse maior de entender e se aproximar de Erik, incentivando-o a se integrar no grupo e constantemente motivando-o, buscando compreender e demonstrar compaixão para com ele e com sua história. Charles, protagonista do filme e peça central da formação e integração dos X-Men, procura constantemente fazer com que os demais mutantes alcancem a desenvoltura plena de seus poderes, de seus potenciais, os incentivando como pessoas e como "heróis" que são.

    O trecho abaixo mostra algumas atitudes fenomenológicas, a exemplo da interesse, estímulo da autonomia e o uso de palavras que façam pensar:


    Por fim, para além da ficção - retrato da realidade em muitos níveis - não é difícil encontrar pessoas que, desacreditadas pelos outros e consequentemente por si mesmas, necessitam de escuta e de compreensão para, em uma possibilidade em potencial, saírem de seus sofrimentos internos e psíquicos e provavelmente mudarem sua situação exterior. Sair da caverna é algo que nem todos querem, talvez o que todos precisem, mas o que poucos conseguem. Ser como Charles Xavier, é algo que deveria ser levado em consideração por todos aqueles que sabem que a verdadeira saúde emocional e felicidade consistem, em ajudar o próximo, com o máximo de incondicionalidade possível e, assim, mudar, talvez, não o mundo inteiro, mas inteiramente o mundo de alguém.

    As mutações espirituais são reais, as mutações psíquicas são tão constantes e numerosas quanto estrelas nesta galáxia, mas fazer do mundo um lugar melhor, fazer o mundo de alguém um lugar melhor é alcançado quando se ama o próximo como a si mesmo, pois como foi dito uma vez por um sábio: "E, sobre tudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição."



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    Texto escrito por estudantes de Psicologia e alunos de outros cursos da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) durante o semestre 2018.1 de modo a integrar diversas disciplinas, alunos de outros períodos e a turma como um todo. O resultado de tudo isso é o nosso Nó Górdio! Obrigado pela leitura! =]

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