JUÍZO MORAL: O ROUBO NA INFÂNCIA
Escreveu Piaget que toda
moralidade consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve
ser procurado no respeito que o indivíduo adquire por essas regras, sendo juízo
moral uma faculdade da alma que permite diferenciar entre o bem e o mal, moral
relacionada com costumes, valores, crenças.
Piaget optou por
seguir sua pesquisa com a questão do dever. O ingresso da criança no universo
moral certamente se dá pela aprendizagem diversos deveres impostos pelos pais e
adultos em geral: não mentir, não pegar as coisas dos outros, não falar
palavrão, etc. Isso é identificado no diálogo de Charles Xavier e Raven no
início do filme em que ele diz que ela nunca mais vai precisar roubar a comida,
mas que ali ela pode pegar comida à vontade.
Piaget afirma que as
noções de dever e do bem tem origens e gêneros diferentes. A gênese do
sentimento de obrigatoriedade, portanto do dever, encontra-se nas relações de
coação; o bem, por sua vez é um produto da cooperação. Na coação trata-se de
fazer como os outros, seguindo-se o critério da semelhança. Na cooperação, no
entanto, o critério é outro: é o da reciprocidade, o que não significa “fazer
igual ao outro”, mas, sim, coordenar o ponto de vista próprio com o ponto de
vista do outro. Charles Xavier no decorrer de todo o filme age como um
cooperador para com uma criança que entrou em sua casa para roubar comida, mas
que ele adotou como uma irmã.
O PROFESSOR XAVIER E A ZONA DE DESENVOLVIMENTO
PROXIMAL
Segundo Lev Vygotsky, há
dois níveis de desenvolvimento: o real - onde o aluno está mediante o que ele
já sabe - e o potencial - onde ele pode chegar e o que ele ainda pode aprender
mediante a ajuda de outras pessoas -. À distância entre o que o aluno é capaz
de fazer de modo autônomo (o nível de desenvolvimento real) e o que ele
aprenderá em colaboração com outros (o nível de desenvolvimento potencial),
Vygostky denominou de zona de desenvolvimento proximal onde estão as funções
que ainda não amadureceram, o que as torna semelhantes a diamantes em estado
bruto que precisam ser lapidadas.
Para tanto, o
professor precisa conhecer a dinâmica e o processo intrínseco a cada um de seus
alunos de modo que eles não sejam pareados, mas cada um desenvolva suas
habilidades, mostre suas dificuldades e troque experiências com o outro -
integração de alunos em diferentes níveis de desenvolvimento - em uma via de
mão dupla. Em suma, a ideia principal é de que o professor tire vantagem das
ricas diferenças em sala de aula e estimule o potencial de cada aluno, afinal
cada um avança em seu próprio ritmo.
Considerando esses
dois níveis de desenvolvimento identificados por Vygotsky (mais uma vez,
salientados: um referindo-se aos processos de conhecimento já adquiridos e o
outro se tratando de capacidades em vias de construção, identificados como
nível de desenvolvimento real ou efetivo e nível de desenvolvimento potencial,
respectivamente) e tomando esta teoria como pano de fundo, ao observar o
personagem Professor Xavier no filme X-Men:
Primeira Classe, percebe-se claramente a aplicação da teoria do psicólogo
russo na prática desempenhada pelo personagem a seus alunos.
O filme mostra um
personagem já familiarizado com a prática docente - Charles Xavier -,
ministrando suas aulas em uma universidade tradicional, o que, ao conhecer
outras pessoas que assim como ele possuíam dons especiais, facilitou a adoção
de uma metodologia que os auxiliassem a compreender o poder de alcance destas
capacidades específicas através da autorreflexão e a prática de exercícios cada
vez mais direcionados a explorar seus potenciais.
Esses jovens com dons
especiais, os mutantes, detêm habilidades sobre-humanas, mas não sabem como
lidar com elas. Há trechos no filme em que o Professor Xavier ensina três
mutantes a desenvolverem os poderes que eles já têm, mas como supracitado, não
sabem controlá-los ou utilizá-los para um propósito devido. A tempo, o
Professor ainda detém conceitos trazidos por Henri Wallon como afetividade no
ensino e o desenvolvimento da motricidade através de exercícios práticos e
controle de movimentos corporais, além da confiança que ele tem em seus alunos,
algo visto na prática fenomenológica-humanista.
O PROFESSOR QUE ACEITA INCONDICIONALMENTE OS
INACEITÁVEIS
No decorrer da
construção da autoidentidade do ser humano, percorremos vários caminhos. Para
se lançar na imensa e profunda problematização filosófica e espiritual do
"ser" presente no humano, é preciso não apenas considerar uma gama
quase que imensurável de questões e conceituações já preexistentes e que
circunscrevem em limitância o quase que ilimitado arcabouço experienciado e,
por que não, experienciável contido no "ser". Não seria fidedigno
também, tal adentramento no universo enigmático e transcendental da existência,
se desconsiderado fosse a necessidade da fragmentação daquilo que já se entende
como verdade, como cláusulas pétreas presente no campo imagético, ético e moral
das pessoas. Não que seja necessária a desvalorização ou o abandono permanente
da própria experiência vívida que compõe a singularidade pessoal e particular
de quem se lança em tal odisseia, mas aquilo que chamamos na filosofia de epokhé (suspenção de juízo) é peça
intrinsicamente ligada e atada à mais próxima percepção e apreensão da
realidade alheia, criteriosamente inviolável para a compreensão do universo do
outro.
Sabe-se que não é de
hoje, que a busca do homem pela compreensão das questões que o cerca, que o
invadem, que dinamicamente interagem com sua existência e que influenciam sua
relação e sua compreensão das coisas que o circunscrevem, o levou aos
pensamentos mais profundos e complexos que fundamentam a filosofia, e como
exemplo de tal feito, lancemos mão do mito da caverna, descrito por Platão no
século V A.C.
Segundo Platão, a
realidade a priori está resumida a
uma caverna, onde, nossa consciência seria como indivíduos presos em seu
interior, sem podermos nos livrar das correntes que nos aprisionam e nos
limitam os movimentos e posição, de modo que nem poderíamos nos libertar nem
mesmo nos virar, estando condenados a olhar eternamente para o fundo da caverna
e condicionados à interpretação de que a realidade está contida naquilo que
sempre vimos e sempre iremos ver, sombras da realidade projetadas no fundo da caverna,
embora não saibamos que tais coisas sejam apenas uma projeção
"sombria" - na conotação literal da palavra - da realidade.
Ainda segundo Platão,
é preciso sair da caverna para então, compreender a realidade como é em si, e
não suas cópias do mundo real atrás de nós, projeções "silhuetadas"
no fundo da caverna escura e limítrofe que seria nossa consciência quando
voltada apenas para o que achamos ou consideramos, sem profundidade nem
vastidão de conhecimento e, apesar de tal processo de saída da caverna para
enfim se enxergar a realidade completa traga uma dor e cegueira temporária aos
olhos de quem nunca antes viu a luz nem se deparou com toda a complexidade do
real, é passado tal processo de dor que alcança-se a libertação que
possibilitar-se-á ajudar na libertação de outros.
Fazendo enfim paralelo
com o filme X-Men: Primeira Classe,
notamos no enredo que narra o início do grupo dos heróis, uma riqueza
fenomenológica presente nas relações dos personagens. É possível perceber ao
longo de todo o filme, a ênfase no que chama-se na fenomenologia de
"atitude fenomenológica", que ao contrário da "atitude natural",
compõe-se da prática da epokhé, da
"redução fenomenológica", onde, através da suspensão dos próprios
valores e princípios, da comum ética e moral, usa-se da empatia, entender o
outro pela ótica do outro, e apesar de não ser preciso concordar, compreender o
outro segundo sua experiência, nos conduz à mais próxima interpretação que
pode-se ter do outro. Também é possível notar, conceitos bem próximos à teoria
centrada na pessoa de Carl Rogers.
Ambas os conceitos são
predominantemente vistos na figura de Charles Xavier, sempre muito empático e
compreensivo, em uma das primeiras cenas do filme, ainda criança, Charles
surpreende no meio da noite uma menina que furtava a sua residência e que,
assim como ele, também é mutante; nesta cena, podemos notar a empatia e o que
podemos chamar da prática da epokhé,
a redução fenomenológica, e Charles, suspendendo o valor
"étnico-moral", acolhe a menina em sua casa, consolando-a e a diz que
não mais ela precisará roubar.
É notório que o modus operandi de Charles contagia os
outros mutantes que ele visa recrutar e o carisma e a prática fenomenológica
presente no comportamento dele é indispensável para sua aceitação como amigo e
líder, pois faz com que as pessoas, em especial os demais mutantes se sintam
acolhidos e compreendidos, aceitos, apesar da rejeição e do medo que enfrentam
mediante à rejeição das demais pessoas, a saber, não mutantes.
Por outro lado,
percebemos a resistência por parte de Erik Lensherr, o Magneto. Tal resistência
é parcialmente, porém não pouco importante, explicada no decorrer do filme. É
justamente tal resistência que leva Charles a um interesse maior de entender e
se aproximar de Erik, incentivando-o a se integrar no grupo e constantemente
motivando-o, buscando compreender e demonstrar compaixão para com ele e com sua
história. Charles, protagonista do filme e peça central da formação e
integração dos X-Men, procura constantemente fazer com que os demais mutantes
alcancem a desenvoltura plena de seus poderes, de seus potenciais, os
incentivando como pessoas e como "heróis" que são.
O trecho abaixo mostra
algumas atitudes fenomenológicas, a exemplo da interesse, estímulo da autonomia
e o uso de palavras que façam pensar:
Por fim, para além da
ficção - retrato da realidade em muitos níveis - não é difícil encontrar
pessoas que, desacreditadas pelos outros e consequentemente por si mesmas,
necessitam de escuta e de compreensão para, em uma possibilidade em potencial,
saírem de seus sofrimentos internos e psíquicos e provavelmente mudarem sua
situação exterior. Sair da caverna é algo que nem todos querem, talvez o que
todos precisem, mas o que poucos conseguem. Ser como Charles Xavier, é algo que
deveria ser levado em consideração por todos aqueles que sabem que a verdadeira
saúde emocional e felicidade consistem, em ajudar o próximo, com o máximo de
incondicionalidade possível e, assim, mudar, talvez, não o mundo inteiro, mas inteiramente
o mundo de alguém.
As mutações
espirituais são reais, as mutações psíquicas são tão constantes e numerosas
quanto estrelas nesta galáxia, mas fazer do mundo um lugar melhor, fazer o
mundo de alguém um lugar melhor é alcançado quando se ama o próximo como a si
mesmo, pois como foi dito uma vez por um sábio: "E, sobre tudo isto,
revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição."
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